É, Cazuza, faz parte do meu show...


          A literatura impregnou-me desde cedo. Graças aos hábitos arcaicos de meu pai, acabei adquirando certa devoção às evidências literárias e conspiraçãos poéticas e filosóficas. Antes fosse isso, caro leitor, na verdade, apenas mais velho descobri o real sentido de tais universalidades, e, percebendo minuciosamente, conclui que sim, havia literatices até nas coisas simples que moldaram o meu imaginário infantil. Dentre estas simplicidades e causalidades, havia Cazuza. 
         Meus familiares e os amigos dos meus familiares costumavam reunir-se em bandos numa sexta-feira noturna para ressuscitar algumas das vozes da música popular brasileira. Eles bebiam, cantavam e choravam ao som de artistas como: Renato Russo, Belchior, Cartola, Elis Regina e Cazuza. Declamavam histórias e momentos eternizados na juventude anos 80: os bares, amores e rebeldias de uma geração que acabara de sair de quase 30 anos de ditadura militar. Era mágico. E eu, como bela criança que não compreendia tais memórias, apenas as admirava em silêncio, quieto. Ademais, e não menos importante, em quase todas estas sextas via-se estrelas e uma Lua simplesmente formidável. 
         Certa noite, enquanto todos riam e a embriaguez chegava para alguns, no moderno home theater do meu tio começava uma melodia harmoniosa, clássica, com um arranjo mútuo, ''meio bossa nova e rock n roll'. A música era ''faz parte do meu show'', de Agenor de Miranda Araújo Neto, ou, como é conhecido, Cazuza. Começando com versos interpessoais, pouco a pouco, fui desprendendo-me da música e agarrando-me mais na poesia. Em dado instante, já estava entregue aos versos do poeta carioca. 

''Faço promessas malucas, tão curtas quanto um sonho bom, se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão.''

         Aos 11 anos, não se tem experiências suficientes para que a canção desperte significados e significâncias, somente depois dos 16 (após duras doses de idiotices adolescentes) é que esta obra ganha sentidos e interpretações, por mais surrealistas e improváveis que sejam para alguns. De qualquer maneira, naquela noite, sob os olhares de astros e desolhares de museus embriagados, senti que algumas palavras me abraçaram, nascia um amor proibido entre mim e a literatura. E, o pior de tudo, é que trata-se de um caso que não permite separação.
        Na melhor das hipóteses, meus caros, tratar a vida como um imenso e inesperado show deva ser a melhor forma de existir, de estar no mundo. Aproveitar cada sentimento, memórias e histórias de um verdadeiro ''Rock in Rio em pleno verão de 85. '' Por fim, Cazuza morreu jovem, crucificado por uma doença até então desconhecida na época,  deixando-nos lições de alguém que atravessou e continua atravessando gerações. Afinal, se o mesmo tivesse para si uma frase póstuma, esta seria:'' Mas se você achar que eu estou derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados.'' E continua, meu poeta, continua...

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